domingo, 8 de junho de 2014
CARTAS A MINHA FILHA Anne C.H. Santos carta 4 O jardim das rosas de Dona Odete e o abacateiro sonhador
.
--A casa foi feita em mutirão. Juntaram-se os tios e tias e vinham aos
fins de semana para ajudar a construir. Antes de morarmos ali na Avenida
Marginal do Corrego da água podre, como era chamada a rua que depois se
tornou Waldemar Roberto, moravamos na beira de um rio, numa favela perto
da vila Dalva. Meu pai comprou com sacrificio, um terreno na beira de um
rio e com mais sacrifício ainda, construiu um cômodo para entrarmos e
moramos ali, todos, minha mãe, ele, eu, o Jaime, o Silvio e a Radinei.
Do outro lado do rio, três barracos de gente que veio do nordeste e não
tinha onde morar. Com o tempo os três barracos se multiplicaram
exponencialmente e viraram milhares e o aglomerado deles passou a se
chamar Favela do Sapé. Saímos de uma favela porque alugávamos um barraco
para morar, veja que pobreza extrema, e quando conseguimos através de
meu pai, sair para morar em uma casa própria, ergueu-se uma favela bem
na frente de casa.
Quando os tios vinham para ajudar bater a lage, rebocar as paredes, era
uma grande alegria. O tio Heitor sempre foi o tio mais brincalhão do
mundo e o tio "Einsten" da família. Sempre foi muito inteligente. Sabia
muito de historia e de muitas outras coisas. Me lembro que ele quem me
ensinou a bater prego com o martelo.
-Segura mais na ponta do cabo e o peso todo do martelo vai fazer um
trabalho mais eficiente. Se você segura muito perto do martelo, a
pancada é mais fraca e você vai levar mais tempo martelando.
Eu adorava aprender as coisas com ele. Ele foi o tio que me ensinou a
dirigir com seu fusquinha azul. Uma coisa tão importante dessas a gente nunca
esquece. Ele arriscou sua vida e seu carro em minhas mãos de aprendiz em
uma época que ainda não era crime um tio ensinar o sobrinho a dirigir.
Quando ele e o tio Gessé iam em casa para ajudar na construção traziam
os filhos era sempre muito legal. O tio Ulisses e a Tia Ica eu vim a
conhecer depois. Também tios amáveis e maravilhosos.
O terreno era grande, tinha uns 400 metros triangulares, pois era largo
atras e mais fino na frente.
Nesta casa eu creci e vi meus irmãos crescerem até onde conseguiram.
Havia um quintal na frente onde minha mãe plantava suas flores. Ela
adorava rosas. haviam ali roseiras de várias cores. Quando sinto cheiro
de rosas lembro me dela. Ela era uma roseira em flor, mas sem espinhos.
Ou um pássaro que cantarolava ao pousar por sobre as roseiras, apesar
dos espinhos. Minha mãe vivia cantando. Sempre me lembro dela a
cantarolar um hino de igreja. "Deixa a luz do céu entrar, abre bem a
porta do teu coração..." era parte da letra. Hoje eu sinto esta letra
muito mais profundamente que na época. Quando estou triste e sozinho, ou
quando estou preocupado com as coisas da vida, me lebro da canção e
canto para ninar meu próprio coração. Deus estava ali, dentro dela,
porque ela fazia do seu canto uma celebração perpétua de seu Deus
interno.
Flores, cores, perfumes, ela hoje deve estar transformando a dimensão em
que habita em um lindo jardim.
Mas voltando ao quintal, havia também um abacateiro que eu mesmo
plantei. Não deve existir mais porque o dono atual da casa deve ter
cortado para que a casa não corresse perigo, mas era lindo. Assim que
ele tomou corpo, eu subia nele para sonhar. Eu tinha uns 13 anos e
Ficava lá em cima, meu mundinho particular, até as tantas da noite só
pensando, sonhando com dias melhores.Até minha mãe me chamar:
-Nado, desce dai, vem dormir.
Aos 13 eu ja trabalhava com carteira assinada e sustentava minha
familia. Trabalhava na Dempabras, uma empresa de projetos sei la do que,
como office boy. Oficeboy era um "faz quase tudo e sabe quase nada" que
as empresas contratavam para levar e trazer documentos, ir a bancos
etc...
Eu pensava em sair do pais, e saia do planeta viajando em minha mente
por lugares que eu ia imaginando. Ver a lua dali daquele galho de
abacateiro era o máximo. As estrelas num dia de céu limpo eram um
espetáculo a parte. Elas piscavam lindamente e dançavam no céu. A noite
ia seguindo em frente e eu ia revesando meu traseiro no galho do
abacateiro para poder permanecer ali por mais tempo. Minha mente era de
uma riqueza tão profunda de pensamentos que eu, se pudesse, nunca mais
desceria daquele galho, meu refúgio na terra. Ali planejei minha viagem
para outro pais quando nem imaginava que eu realmente iria. Ali eu
tentava enxergar nem que fosse um milimetro do meu futuro para poder ter
esperança. Alias, esperança foi algo que aprendi a ter com minha mãe.
Não importa como, não importa quando, mas farei tal viagem um dia. E fiz
mesmo.
A adolescencia foi uma tremenda aventura. Um laboratório de vida e de
experiências humanas que foi muito importante em minha vida. Eu
realmente me sentia vivo e vivia cada segundo de minhas aventuras, nem
que fosse uma aventura besta de pegar uma trilha no mato com o Bob, meu
cachorro branco de nariz marrom. Eu sentia todos os cheiros, todas as
cores, o vento na cara, o medo do escuro, os pingos da chuva, tudo, com
muita, mas muita intencidade. Valorizo cada momento daquelas
experiencias, das quais me lembro até hoje.
É isto o que tenho hoje a dizer pra você minha querida Anne. Daqui do
meu distante planeta, te envio muito boas energias.
Namastê. O deus que habita em mim saúda o deus que habita em você
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